Assim como água e óleo, a psicologia não
deveria se misturar com algumas coisas. Mas assim como existem os agitadores,
que por vezes fazem o óleo quase mesclar-se com a água, ficando um líquido meio
viscoso, existem pessoas que, infelizmente misturam coisas que não sintetizam:
psicologia e astrologia, psicologia e autoajuda, psicologia e religião, etc.
Ao analisar o desenvolvimento da psicologia,
notamos que a mesma é constantemente atacada por diversos flancos, mostrando a
existência de vários perigos para a subsistência desta como ciência: um
destes perigos, que apareceu em meus estudos sobre epistemologia da psicologia,
é o do modismo teórico.
O modismo teórico se caracteriza quando
profissionais abraçam uma prática pretensamente científica sem a devida
reflexão sobre as suas implicações epistemológicas, ontológicas e
metodológicas, gerando uma atuação instrumentalista, alienada e perigosa. Como
assim? Simples! Lembre-se do grande filósofo Chicó (de o “Auto da
Compadecida”), com seu célebre adágio: “Não sei, só sei que foi assim!”.
Sim, tem muito profissional fazendo um monte de
não sei lá o que, sem saber como funciona, indo pela “intuição”, guiando-se
pela mera experiência irreflexiva, sendo levado pelo vento... trabalhando com
pessoas! Uma das condições para uma prática ser científica é a sua capacidade
de descrever a realidade, e olha que estou sendo modesto nesta definição, pois
algumas pessoas mais “ortodoxas” diriam que ela teria que ser capaz de executar
certo nível de previsibilidade.
Mas enfim, para ser ciência, uma prática
precisa estar ancorada em uma série de princípios sistematizados que dão
sustentação a um corpus teórico: esta base precisa de pelo menos (estou sendo
modesto novamente) um tripé bem definido – epistemologia, ontologia e
metodologia. E para ser menos modesto, ainda diria que para ser ciência, esta
prática deve se preocupar com seu caráter ético e estético. Como assim?
Uma ciência precisa saber bem sobre o objeto
que está falando (ontologia), como pode alcançar um conhecimento sobre este
objeto (metodologia) e ainda assim,
se este conhecimento é válido, compatível com a realidade (epistemologia) – este é o tripé. Cumpridas estas etapas, ainda
precisamos perguntar, para que tal conhecimento serve, ou a quem ele serve e
por que (ética) e também como este
conhecimento se apresenta (estética).
Ou seja, não é fácil fazer ciência! Tanto não é
que, por conta disso, a psicologia caiu em vários modismos teóricos até chegar
aqui, ainda cambaleante, na tentativa de separar o que é fato do que é mito. Um
grande exemplo disso foi a Frenologia, criada próxima da época da
formalização da psicologia enquanto ciência, e por muito tempo fez parte do
arcabouço teórico desta.
Para quem não sabe, a Frenologia foi uma
pseudociência fundada por Franz Jospeph Gall (1758-1828) por volta do ano 1800,
e dizia ser capaz de descrever a personalidade, o caráter ou algumas funções
metais da pessoa graças ao formato da caixa craniana do indivíduo. Segundo esta
teoria, o cérebro de cada pessoa teria áreas específicas mais desenvolvidas, o
que acentuaria a caixa craniana da pessoa, marcando alguns traços de
personalidade, por exemplo. Assim, uma pessoa que tivesse a parte de trás da
cabeça mais proeminente, por exemplo, poderia ser considerada uma pessoa
“sábia” (foi só um exemplo aleatório, não sei como eles interpretavam cada
parte específica da cabeça). E assim, temos vários modismos na psicologia,
alguns dos quais são bastante contemporâneos, como por exemplo: PNL,
Neuro-tudo-o-que-você-puder-imaginar (teve uma época há não muito tempo em que
pegaram a palavra “neuro” e colocaram como prefixo para qualquer coisa,
simplesmente para vender), e agora o tal do “coaching”.
Mas o que tem o tal do coaching? Muita coisa!
Para começar o coaching é uma “salada” metodológica, com fraca base
epistemológica, e com ontologia desconhecida. Primeiramente, vamos tentar
definir o tal do coaching:
DEFINIÇÃO 1: "Coaching é um
processo que visa elevar a performance de um indivíduo (grupo ou empresa),
aumentando os resultados positivos por meio de metodologias, ferramentas e
técnicas cientificamente validadas, aplicadas por um profissional habilitado (o
coach), em parceria com o cliente (o coachee). (Villela Da Matta & Flora
Victoria)” – Sociedade Brasileira de
Coaching (SBC);
DEFINIÇÃO 2: “Há diversas teorias
sobre a origem do termo “coach” no contexto do desenvolvimento de pessoas, mas,
em algum lugar da história, ele compartilha um ancestral comum com o verbo em
inglês “coax”, que significa PERSUADIR. O profissional de coaching atua como um
ESTIMULADOR externo que desperta o potencial interno de outras pessoas, usando
uma combinação de flexibilidade, insight, perseverança, estratégias,
ferramentas pautadas em uma metodologia de eficácia comprovada e, então, o
Coach (Profissional) acompanha seu Coachee (Cliente), demonstrando interesse
genuíno (às vezes chamado de carisma) para APOIAR os seus clientes de Coaching
(Coachees) a acessar seus recursos internos e externos e, com isso, melhorar
seu desempenho.” – Sociedade Latino-americana
de Coaching (SLAC);
DEFINIÇÃO 3: “Coaching é a maior e
melhor metodologia de desenvolvimento e capacitação humana existente na
atualidade e a carreira que mais cresce no mundo. Um mix de recursos que
utiliza técnicas, ferramentas e conhecimentos de diversas ciências como a
administração, gestão de pessoas, psicologia, neurociência, linguagem
ericksoniana, recursos humanos, planejamento estratégico, entre outras visando
à conquista de grandes e efetivos resultados em qualquer contexto, seja
pessoal, profissional, social, familiar, espiritual ou financeiro. Trata-se de
um processo que produz mudanças positivas e duradouras em um curto espaço de
tempo de forma efetiva e acelerada.” - Instituto
Brasileiro de Coaching (IBC);
DEFINIÇÃO 4: “O Coaching é um método
usado largamente mundo afora tanto no contexto profissional como no pessoal.
Essa metodologia prestigia a estrutura racional e cognitiva do cérebro. No
processo de coaching, o primeiro passo é estabelecer o estado atual, ou seja,
todos os detalhes da situação atual do cliente. O segundo passo é estabelecer
detalhadamente onde o cliente quer chegar (estado desejado). Tendo estabelecido
estes dois pontos, o coach conduz seu cliente na elaboração de um minucioso
plano de ação que fará o cliente trafegar da posição 1 (estado atual) para a
posição 2 (estado desejado) em um tempo recorde. De forma ainda mais resumida,
o coaching promove o desenvolvimento e a potencialização das competências
pessoais.” Federação Brasileira de Coachng Integral Sistêmico (FEBRACIS);
DEFINIÇÃO 5: “Coaching é um processo de
aceleração de resultados onde é estabelecido um relacionamento de alto nível
entre o Coach e o coachee (cliente) com o propósito de alavancar seus
resultados na vida pessoal e profissional gerando assim um aumento
significativo nos níveis de energia, plenitude e felicidade” - Academia Internacional de Coaching (AIC).
Vou apontar alguns problemas: o primeiro deles é a ausência de
referenciais acadêmico-científicos nestas definições. Uma busca rápida nos
portais indexadores de Revistas Científicas (Scielo, BVS Psi, etc.) quando não
mostrarem a ausência de textos, vão mostrar textos muito ruins que nem deveriam
ser considerados científicos, e que também terão dificuldades relevantes para
definir o que é coaching. De todos os sites pesquisados, o que apresentou maior
cuidado para mostrar algum histórico ou fundamentação teórica para o que vem a
ser coaching, foi o da DEFINIÇÃO 5 (AIC). Mesmo assim, o que foi relatado no
site, necessita ser melhor esmiuçado e faz associações históricas um pouco imprecisas.
Segundo, em vários momentos os sites que
vendem a formação em coaching dizem que vão apresentar um método “altamente
comprovado”, mas nunca mostram quais são as evidências em que se baseiam tais
comprovações. Não apresentam artigos científicos, pesquisas, correlações
válidas, etc.
Terceiro, o coaching é, conforme já dito, um
mix de coisas, e isso é muito sério filosófica e cientificamente. Como assim?
Isso é o que chamamos de ecletismo
teórico – a pessoa pega as partes que interessa da teoria, junta elas em um
mesmo “bolo” sem ter a preocupação epistemológica de trabalhar a coerência de
seus pressupostos, o que gera uma prática altamente instrumentalista. Vou dar
um exemplo: “O cara faz uma formação de 6 semanas para ser “Life Coach”, daí,
durante um de seus trabalhos, entra em contato com um grande trauma de vida de
um cliente, e este, durante o confronto pessoal, sofre um processo de regressão
à primeira infância (deita no chão em posição fetal, começa a babar e chorar) e
fecha-se neste quadro catártico. O que esse coach vai fazer? Provavelmente,
NADA! Isso porque ele não está preparado para lidar com aspectos profundos da
personalidade, do desenvolvimento social, cognitivo e afetivo daquele sujeito.
Quem dirá lidar com o simbólico daquele sujeito! Isso mostra o perigo de trabalhar com práticas ecléticas,
pois como diriam Berger e Luckmann (1980), são recheadas de conhecimento
receitado, o que quer dizer que se algo sair pelo menos um pouco fora do
script, dificilmente haverá um plano de contingências.
Quarto, o coaching, como temos visto hoje,
está recheado de um personalismo
mercadológico que é feito simplesmente para marketing e venda. Vários sites
de coaching dizem que possuem o “método
mais atual”, ou “o melhor método do mundo”, “Reconhecido internacionalmente
pela instituição X”, ou coisa do tipo. Geralmente estes sites dizem que tal
ferramenta foi “elaborada pelo palestrante TAL que trabalha há TANTOS anos
formando pessoas”. Ora, isso é uma falácia
clássica (anunciado ou raciocínio falso que tem aparência de verdadeiro), a
do Argumentum
ad Verecundiam (Argumento de Autoridade), que diz “se o fulano de tal
disse, então é verdade” (oras,esse tipo de argumento é tolice! Até os grandes
PhD’s se enganam, e não é porque uma pessoa é uma autoridade que tudo o que ela
diz é verdade!). Mas a moral da história é que esse tipo de argumento e
utilizado para: 1) Vender peixe; 2) Vender o pescador. Afinal de contas, que
moral tem uma pessoa que “criou um método internacional” não é mesmo?!
Quinto, e aqui também vou me referir a
estética do coaching: este é vendido como um produto milagroso! Como se ele
fosse capaz de resolver todo e qualquer problema possível de determinado
conjunto de questões. Essa espécie de soberba
metodológica é totalmente anticientífica! A ciência pode ser entendida como
uma tentativa temporal de descrição, explicação e/ou previsão de parte da
realidade possível, e pauta-se sobre a tentativa e erro organizadas de modo
sistemático. O coaching, da forma com tem sido, tem utilizado-se de uma espécie
de proselitismo epistemológico,
dizendo que é o maior, o melhor, o mais avançado ou o mais não sei o quê! Em
muitos momentos, desculpem a minha acidez mental, parece uma propaganda de
igreja neo-pentecostal para atrair membros, quando não, uma espécie de marketing
multinível.
O sexto
ponto que apresento contra o coaching também está no nível do estético, cruzando
com o metodológico, quando o coaching reifica
o seu objeto. Hã? Isso é de comer ou passar no cabelo, Murillo? Reificação é um
termo que significa “coisificar” (Abbagnano, 2007), ou seja, quando o coaching
constrói um discurso de que é preciso tratar uma questão relacionada ao
psiquismo ou comportamento humano simplesmente objetivando o resultado. Oras, a
psicologia já nos mostra que as coisas existem (inclusive as dificuldades
psicológicas) por que são função de algo, ou seja, se eu tenho medo de andar de
carro, esse medo existe porque, muito provavelmente, sustenta algum tipo de questão mais profunda no
desenvolvimento da personalidade do sujeito. E o coaching não parece estar
muito preocupado com questões filosóficas de base na existência das pessoas,
salvo algumas exceções.
Mas depois de tanto falatório, vou terminar
mostrando o sétimo ponto: o coaching é uma atualização recauchutada de
termos psicológicos, administrativos, dentre outros, misturados, com nome em
inglês, e com uma boa dose de impressionabilidade. Tem muita gente por aí
tentando distinguir coaching de psicoterapia... alguns vão até bem longe nisso,
mas esquecem-se que desde que a psicologia existe no Brasil, enquanto profissão
(1962), além de psicoterapia, os psicólogos realizavam orientação profissional,
vocacional e de carreira, aplicavam testes, dentre outras questões que cruzavam
a prática da psicologia clínica e organizacional. Coaching é só um nome bonito,
pintado em inglês (afinal de contas, nossa colonização cultural adora termos
gringos), que camufla uma prática eclética perigosa, instrumentalista, mal
fundamentada, que acaba por entregar um mix de psicologia capenga, com
autoajuda, neo-pentecostalismo secular e impressionabilidade hipnótica.
Quando psicólogos passam a se chamar de “Coaches”,
em minha opinião, esquecem-se que estudaram pelo menos 5 anos desenvolvendo
trabalhos em teorias da personalidade, psicologia social, desenvolvimento
humano, matrizes do pensamento psicológico, metodologia, etc., e, por
replicarem treinamentos de “coaching” para não-psicólogos, na maioria das vezes
entregam e disseminam uma prática psicológica mal estruturada, deformando a
integridade da psicologia enquanto ciência e profissão, e abrem o mercado das
práticas psicológicas (ora bolas, também temos que defender nosso mercado,
nossa prática profissional) para não psicólogos, que passam a dominar
rudimentos de técnicas psicológicas.
Foi o tal do “coaching de tudo o quanto há” que
criou (copiou) alguns testes psicológicos e os transformou em “testes de
desempenho” (ou qualquer outra coisa) e abriu a aplicação para gente que nem ao
menos sabe como manipular variáveis estatísticas ou mesmo metodologia
qualitativa.
Saiba psicólogo, que quando você deixa de se
identificar como PSICÓLOGO(A) e passa a se chamar de coach, você está, de forma
ainda que inocente, desfazendo-se de sua formação, indo pelo caminho do
modismo, do ecletismo e do instrumentalismo teórico.
Referências
Abbagnano, N. (2007). Dicionário de Filosofia (5ª Ed.). São Paulo: Martins Fontes.
Berger, P., & Luckmann, T. (1980). A construção social da realidade.
Petrópolis: Vozes.
Conselho Federal de Psicologia (2016). CFP e
Apaf divulgam nota de esclarecimento sobre a Psicologia do Esporte e coaching.
Extraído no dia 16 de Janeir de 2017, do site: http://site.cfp.org.br/cfp-e-apaf-divulgam-nota-de-esclarecimento-sobre-a-psicologia-do-esporte-coaching-e-sistema-conselhos/
Imagens: Extraídas do Google Imagens.
Sobre o autor:
Murillo Rodrigues dos Santos, é psicólogo (CRP 09/9447) graduado pela PUC Goiás (Brasil) com período sanduíche na Universidad Católica del Norte (Chile). Possui aperfeiçoamento profissional pela Brown University (EUA) e Fundación Botín (Espanha), com formações pela Fundação Getúlio Vargas (Brasil), Universidad de Cantabria (Espanha) e Finnovarregio Fondattion (Bélgica). Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Goiás (Brasil). Conselheiro Tesoureiro e Presidente da Comissão Especial de Psicologa Organizacional e do Trabalho do CRP 09.